sábado, 30 de abril de 2016

Paulo Varela Gomes












Morrer como um touro

O Ministério da Cultura resolveu criar uma secção de tauromaquia no Conselho Nacional de Cultura a pretexto de que lidar touros seria uma tradição cultural portuguesa a preservar. Mas a tradição é mais antiga, do tempo em que humanos e animais lutavam na arena para excitar os nervos da multidão com o sangue e a morte anunciada. A piedade, que é um valor mais antigo do que Cristo, veio, na sua interpretação cristã, salvar disto os humanos. Esqueceu-se, porém, dos animais.

Há um momento nas touradas em que o touro, muito ferido já pelas bandarilhas, o sangue a escorrer, cansado pelos cavalos e as capas, titubeia e parece ir desistir. Afasta-se para as tábuas. Cheira o céu. Vêm os homens e incitam-no. A multidão agita-se e delira com o sangue. O touro sabe que vai morrer. Só os imbecis podem pensar que os animais não sabem. Os empregados dos matadouros, profissionais da sensibilidade embaciada, conhecem o momento em que os animais "cheiram" a morte iminente. Por desespero, coragem ou raiva (não é o mesmo?), o touro arremete pela última vez. Em Espanha morre. Aqui, neste país de maricas, é levado lá para fora para, como é que se diz? ah sim: ser abatido. A multidão retira-se humanamente, portuguesmente, de barriga cheia de cultura portuguesa, na tradição milenar à qual nenhuma piedade chegou.

Os toureiros têm pose que se fartam (e com a qual fartam toda a gente). Pose de hombre, pose de macho. Mas os riscos que de facto correm são infinitamente menores que a sorte que inevitavelmente espera os touros, que o sofrimento e a desorientação que infligem aos touros para o seu próprio prazer e o da multidão. Dá vontade de dizer que quem se porta assim, quem mostra orgulho de se portar assim, tem entre as pernas, e não apenas literalmente, órgãos bem mais pequenos que aqueles que os touros exibem. Os toureiros são corajosos mas entram na arena sabendo que haverá sempre quem os safe, senão à primeira colhida, então à segunda. Às vezes aleijam-se a sério e às vezes morrem, o que talvez prove que os deuses da Antiguidade são justos, vingativos e amigos de todos os animais por igual. Os touros, esses, não têm ninguém que os vá safar em situação de risco, estão absolutamente sós perante a morte. Querem os toureiros ser hombres até ao fim? Experimentem ser tão homens como eram os homens e os animais na Antiguidade: se ficarem no chão, fiquem no chão. Morram na arena. É cultura. A senhora ministra da Cultura certamente compensará tão antigo costume.

Também era da tradição, em Portugal por exemplo, executar em público os condenados, bater nas mulheres, escravizar pessoas. Foi assim durante milénios. Ninguém via mal nenhum nisso a não ser, confusamente, com dúvidas, as próprias vítimas. Até que a piedade, na sua interpretação moderna e laica, acabou com tão veneráveis tradições.

Que será preciso para acabar com a tradição da tourada? Que sobressalto do coração será necessário para despertar em nós a piedade pelos animais?

Público, 27 de Fevereiro de 2010

Morrer é mais difícil do que parece

Tenho um cancro de grau IV. De cada vez que abro o teclado do computador na intenção de escrever, ocorre-me a frase, já mil vezes repetida, “Quando estiverem a ler estas linhas, é provável que o autor já não esteja vivo”.

São incontáveis os artigos, livros, documentários e filmes sobre pessoas que morrem de cancro. Nunca vi nenhum porque não aguento o stress mas ouvi dizer que alguns são eficientes e fazem os espectadores chorar muito. Não vou escrever aqui um artigo desse género, primeiro, porque não sou capaz, e em segundo lugar porque a história da minha doença e daquilo que tenho feito para lidar com ela tem algumas características muito peculiares que podem interessar a todo o género de pessoas que se preocupam com a vida e a morte e que pensaram com seriedade no tema deste número da Granta: “Falhar melhor”.

Tudo começou quando acordei uma manhã com um inchaço do tamanho de uma amêndoa no lado esquerdo do pescoço. Iludido por uma espécie de incredulidade optimista, pensei que se tratava do resultado de uma infecção nos dentes ou na garganta. Desenganou-me um médico especialista dessas áreas com quem fui falar alguns dias depois: “O senhor tem uma massa na garganta. É melhor ir ver isso rapidamente.” Estava muito grave e sossegado, ele. Percebi depois que nunca lhe tinha passado pela cabeça que alguém não soubesse o que quer dizer “massa” em termos orgânicos. Esta foi a única consulta médica a que a Patrícia, minha mulher e minha “curadoura”, não me acompanhou. Estava a ajudar a Rita a podar as videiras da Vinha Comprida. Quando lhe telefonei a transmitir a seca mensagem do médico, percebeu tudo e diz-me que ficou imenso tempo a olhar lá para o longe, para o pinhal sobre a várzea, com as lágrimas a correr-lhe pela cara.

Quarenta e oito horas depois fiz a obrigatória TAC cervical. Despi-me sem preocupações, coloquei aquela bata ridícula dos hospitais que faz qualquer pessoa parecer que sofre ininterruptamente dos intestinos, deitei-me na máquina. No fundo, esperava boas notícias: não tarda, iriam informar-me de que se tratava de uma chatice menor. Estivemos depois hora e meia debaixo da luz verde escura, crepuscular, da sala de espera. Quando o radiologista veio falar connosco, acabou nesse preciso instante a vida que levávamos juntos há mais de duas décadas. O radiologista tinha a expressão macambúzia de quem apresenta os pêsames a uma família enlutada: cancro na otofaringe com tumor na cadeia linfática cervical posterior e metástases no pulmão. Não operável. Tratamentos em doses muito altas de quimio e radioterapia para, daí a dois a quatro meses, deixar de poder comer ou respirar.

Decidimos que nunca me submeteria aos tratamentos da medicina oncológica, às suas armas: as clássicas (cirurgia), as químicas (drogas) e as nucleares (radioterapia). Estas armas destroem as defesas próprias do organismo e aceleram frequentemente a sua degradação. Já vi suficientes doentes de cancro entregues nas mãos da oncologia para tremer de horror ao pensar que poderia suceder-me o mesmo.

Quando voltámos para casa, não houve uma lágrima, um gesto de desespero, um queixume. Falámos muito pouco. As estradas por onde passávamos tantas vezes pareciam agora ter uma realidade inverosímil, como se fossem pinturas de paisagem antiga. Fazia calor e a luz era branca.

Durou vários dias seguidos, este silêncio emocional. As palavras que trocámos em casa foram reduzidas ao mínimo. Uma consulta com um médico do IPO confirmou tudo o que estava no relatório do radiologista. Mais tarde, algumas instituições com nomes que tilintam como lingotes de ouro vieram dizer-nos o mesmo: não havia nada que valesse a pena fazer.

Essas opiniões não nos importaram, porém. Numa estranha frieza, só quisemos saber o que faríamos para acabar com a minha vida quando essa altura chegasse. A Patrícia jurou que não me impediria de morrer, e até me ajudaria se fosse necessário. Como disse Plotia ao poeta em
A Morte de Virgílio de Hermann Broch: “A morte fecha-se a quem está só, o conhecimento da morte apenas se desvenda à união de dois seres.”

Sucede que estes acontecimentos já me parecem um pouco perdidos no nevoeiro do tempo. Passaram mais de mil dias desde a tarde abafada de 23 de Maio de 2012, quando fiz a TAC, até à nebulosa e fresca tarde de Primavera em que estou aqui a escrever isto. Dois anos e onze meses.

Não sei se nesta evolução, que não tem cessado de nos surpreender e a quem nos conhece, podemos adivinhar a lenta condensação de um milagre. Sei que há muita gente a rezar por mim e é com alegria que agradeço a todos.

Mas sei também que tenho recorrido a muitas medidas práticas para evitar a sorte ditada pelos oncologistas.

A primeira foi fazer-me acompanhar, desde algumas semanas depois da TAC, por um médico homeopático (os médicos encartados não acham graça nenhuma a que se chame médico a um homeopata, mas tenham santa paciência). Sob sua orientação comecei por mudar radicalmente de regime alimentar. Em vez de comer produtos tóxicos como faz a maior parte das pessoas, passei a alimentar-se com produtos que ajudam o meu sistema imunitário e alguns que combatem o cancro activamente. Além disso, o médico foi prescrevendo suplementos alimentares e medicamentos homeopáticos.

Devo à homeopatia a qualidade dos mais de mil dias de vida que levo de vantagem sobre os médicos oncologistas. Duas ou três semanas depois de começar a terapia já começava a duvidar de alguma vez ter tido cancro. Imaginem: um canceroso em estado grave, que pouco tempo antes estava arrasado de cansaço e pessimismo, foi à praia! Confesso que tive medo de entrar na água, eu que vivi junto ao mar e mergulhei nas suas ondas vezes incontáveis. Só no segundo dia consegui decidir-me, e foi tão grande a felicidade experimentada no corpo que percebi que a Idade do Gelo em que tínhamos vivido desde o diagnóstico tinha dado lugar a uma Primavera, incerta e frágil, é verdade, cheia de dias de nuvens, mas tempo de viver e não de morrer.

As semanas correram e fomos passear a Toledo, a Burgos, a Viseu. Participei em conferências, orientei alunos, fiz todos os dias companhia à minha mulher e aos nossos seis cães, andei com a minha neta aos saltos sobre os charcos de água da chuva. As minhas análises foram durante muito tempo boas, e o meu aspecto muito diferente da maioria dos desgraçados que frequenta os campos de morte da oncologia. Além disso, como os leitores e leitoras saberão, escrevi e publiquei três romances, uma colectânea de colunas escritas para jornais, e finalizei mais um romance e um livro de contos.

Todavia, não houve um único dia em que não tenha pensado na morte. Nem um. Ao princípio não receei mas também não compreendi essa Senhora de Negro e, portanto, ofereci-lhe de bandeja as inúmeras oportunidades que, demoníaca, busca dentro de nós para nos fazer a vida num inferno ou para nos levar. É verdade que a vontade de viver teve desde sempre mais poder sobre mim do que a desistência perante a morte ou a ida ao seu encontro – já não estaria aqui se assim não fora. Mas vida e morte estão por vezes demasiado próximas e o conflito entre elas que tem lugar no meu espírito é muito antigo e muito complexo. Sou acompanhado por psicanalistas há muito tempo. Aquele com quem trabalho desde há alguns anos, e que é uma das peças-chave do puzzle da minha não-morte, recebeu como uma pancada a notícia do meu diagnóstico e, depois de uma breve conversa entrecortada de angústia e silêncio, lembro-me de lhe ter dito com um ar quase triunfante: “Nem sempre se pode ganhar, doutor…”

Quem é que estava a falar assim pela minha boca? Quem é que experimentava em mim essa estranha alegria raivosa que emergira quando soube que tinha um cancro e que este era incurável? Que força psíquica queria que eu morresse, que as pessoas tivessem misericórdia de mim, se recordassem, me admirassem? Que parte de mim, velha e zangada, se aproveitava assim deste meu narcisismo para me arrastar para a morte?

A vida é muito menos cheia de prosápia do que a morte. É uma espécie de maré pacífica, um grande e largo rio. Na vida é sempre manhã e está um tempo esplêndido. Ao contrário da morte, o amor, que é o outro nome da vida, não me deixa morrer às primeiras: obriga-me a pensar nas pessoas, nos animais e nas plantas de quem gosto e que vou abandonar. Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me amam, e cresce de repente no meu coração a maré da vida. Cada lágrima que me escorre por vezes pela cara ao adormecer, cada aperto de angústia na garganta que sinto quando acordo de manhã e me lembro de que tenho cancro, cada assomo de tristeza que me obriga a sentar-me por vezes à beira do caminho quando vou passear com os cães e interrompe a oração ou a conversa com o céu que me embalava o espírito, cada um destes sinais provém do falhanço momentâneo do amor dos outros em amparar-me, e sobretudo do meu em permitir-lhes que me acompanhem.

Quando, pelo contrário, decorre um dia em que consigo escrever e gosto daquilo que escrevo, em que me curvo sobre os canteiros para cortar ervas daninhas, em que admiro amorosamente a energia da Patrícia sentada ao computador ou a trazer lenha para casa, quando isto sucede, o meu tempo já não é o Tempo Comum mas antes um longo domingo de Páscoa: sinto a presença amorosa de todos os que precisam de mim e d’Aquele de quem eu preciso.

O médico homeopata nunca me prometeu um milagre, e a minha saúde começou a piorar em Janeiro de 2014, cerca de um ano e meio depois do diagnóstico oncológico. Pouca coisa, ao princípio: algumas dores no pescoço, na cabeça e na garganta, mais cansaço, problemas intestinais. Pouco a pouco, desapareceram ou tornaram-se-me impossíveis, um por um, todos os prazeres físicos de cujo timbre e tom já quase me esqueci: o sexo, beber um copo de vinho tinto antes do jantar, fazer uma viagem com mais de duas ou três horas, o gosto da comida sólida a percorrer-me o interior da garganta com os seus variados sabores e texturas, uma corrida com os miúdos ou os cães.

Houve semanas piores, outras melhores, mas o tumor do meu pescoço foi crescendo, rebentou como um pequeno vulcão de pus, e ficou pouco a pouco com um aspecto tão abominável que deixei de aguentar ser eu a mudar o penso todas as manhãs. O terrível panorama estragava-me o dia e a melancólica e repugnante tarefa de cuidar do tumor ficou adstrita à Patrícia, que sabe fazer tudo e não tem nojo de nada. Mais tarde, alternando com ela, começaram a vir regularmente a minha casa as enfermeiras dos serviços continuados de saúde.

E, de repente, ia morrendo: uma grande hemorragia despertou-me a meio de uma noite de Julho de 2014, encharcado no sangue que brotava de uma veia que o tumor do meu pescoço pôs a descoberto e enfraqueceu. Desmaiei imediatamente e a Patrícia, não conseguindo ao princípio acordar-me, pensou que tudo estava acabado.

Ganhei depois, com lentidão e a custo, uma relativa saúde. Passei dias inteiros deitado. Depois, devagarinho, melhorei. Uma nova hemorragia, em Dezembro, embora não tenha atingido a violência da anterior, obrigou-me a considerar uma transfusão de sangue que fiz num hospital que estava, como quase todos nessa época, mergulhado num tal caos que passei um dia simultaneamente divertido e ofendido a observar a desordem que grassava à minha volta.

As duas perdas de sangue fizeram pender a balança para o lado da minha morte interior: regressei à melancolia com que me sentava à sua cabeceira conversando com ela nas duríssimas semanas do Verão de 2012 que se seguiram ao veredicto do cancro. Como é que vou morrer? Exactamente como?, perguntava-lhe.

Não me referia à chamada morte natural, que nunca me tinha ocorrido desde o primeiro dia da doença. Falava da morte infligida por mim próprio.

Entretanto, porém, o cristianismo, que estava quase esquecido desde o meu baptismo, irrompeu pela minha vida através da palavra de um Padre que é outra peça-chave do puzzle, mas desta vez, e ao invés do psicanalista, do puzzle do meu encontro feliz com a morte.

O suicídio é uma ofensa frontal à vontade de Deus que quer que a morte de cada cristão seja a sua disponibilidade para de se entregar à Cruz no momento em que Cristo quiser e da maneira que Ele decidir. Mas eu e a Patrícia tínhamos jurado que eu morrerei aqui, em minha casa, e que nada me fará embarcar no carnaval de luzes da ambulância para ir morrer a um hospital. Esse juramento mantém-se.

Tomámos esta decisão mal tínhamos saído do parque de estacionamento da clínica onde fiz a TAC e ouvi o diagnóstico. No meu espírito doente, a morte celebrava jubilosamente a vitória desse momento e era-me tão impossível controlar ou combater este sentimento como invocar a luz da esperança, encolhida num canto de mim como um miúdo paralisado de terror. Enquanto regressávamos a casa, eu pensava na dificuldade e nos riscos envolvidos no modo como morreu o meu irmão, pensava no salto de uma ponte, pensava na agonia do veneno, na ignorância sobre medicamentos letais, mas sobretudo no facto de que todos estes caminhos da morte ainda concedem ao suicida o tempo suficiente para se arrepender, precisamente aquilo que eu não queria na altura, mergulhado num tumulto mental que julgava mais voluntário e corajoso do que de facto era.

Experimentei por vezes os movimentos da dramatização da minha morte, uma espécie de novela sem invenção e sem vida cujo maior óbice era o de saber se, na altura definitiva, teria a certeza absoluta de não haver outra solução. Conseguiria deitar fora como se fossem trocos sem valor os restos de vida que continuam a cintilar dentro de mim? E se me enganasse? Se não fossem meros desperdícios? Se valessem mais do que a escuridão silenciosa do túmulo onde vou apodrecer?

Aquando da segunda hemorragia, cheguei-me muito próximo de encontrar uma resposta sem alternativa a estas questões. Depois de fechar os cães e de me despedir brevemente da Patrícia, sufocada de pavor e lágrimas, ajoelhada no chão sem conseguir olhar para mim, saí de casa transportando a arma e uma cadeira de plástico onde me sentar com a coronha da arma apoiada no solo. Quase não tinha forças e tremiam-me as pernas. A minha camisa estava empapada em sangue e, tendo passado a mão pela cara e os óculos, vi as árvores, os arbustos, a casa das ferramentas e do tractor, a encosta, a vinha, através de um nevoeiro vermelho. A decisão com que, apesar da fraqueza física, andei sem hesitar algumas dezenas de passos, surpreendeu-me a mim mesmo. Pronto, ia morrer. Aspirei o cheiro intenso, quase ridente, de uma hortelã-pimenta que nascera ao pé do pinheiro grande sem que, até então, alguém tivesse dado por ela. Coloquei a cadeira junto a uns troncos cortados, sentei-me e, já com os canos da arma na boca, o dedo aflorou o gatilho. Senti o metal como uma coisa sem qualidade, cálida, mortiça, dócil. Tudo me pareceu vagamente ridículo, o meu gesto, os objectos de que me rodeara. Veio até mim mais uma vez o cheiro da hortelã. Ergui os olhos que tinha fixados na guarda do gatilho e vi um pinhal que o sol, através de uma abertura nas nuvens, isolava, dourado, do verde-escuro da encosta. Ocorreu-me de repente uma vaga de alegria inexplicável, como se fosse um sinal da presença de Deus à semelhança daqueles que os textos sagrados referem por vezes. Cheguei à mais simples conclusão do mundo: estava vivo e, enquanto assim estivesse, não estava morto. Fiquei verdadeiramente contente, a vida a fervilhar em todas as veias, mesmo as estragadas. Pousei a arma no chão e regressei a casa. Não olhei para trás, para a cadeira branca e a arma, que ficaram ali completamente indiferentes à minha sorte. Ao abrir a porta, a Patrícia, sem conseguir dominar a torrente de lágrimas que lhe corria pelo rosto, caiu-me nos braços. Ficámos muito tempo agarrados um ao outro, quase imóveis, como se fôssemos o tronco de uma grande árvore.

Não há muito mais a contar. A saúde vai piorando pé ante pé.

Deixei para trás a ideia de suicídio por uma razão muito simples que levou demasiado tempo a descobrir. Ei-la nas palavras que Mateus atribui a Cristo (Mt 10, 39), palavras que iluminaram como um relâmpago – e finalmente resolveram no meu coração – a maneira hesitante como lidei com o sofrimento nestes mais de mil dias:

“Aquele que conservar a vida para si, há-de perdê-la; aquele que perder a sua vida por causa de mim, há-de salvá-la”.

S. Domingos, Podentes, 10 de Abril de 2015

Dying Is More Difficult Than It Seems

I have stage 4 cancer. Every time I open up the keyboard of my computer intending to write, there comes to me a phrase. It’s been repeated a thousand times: “When you read these lines, it is likely the author will no longer be alive.”

There are countless articles, books, documentaries and films about people who die of cancer. I’ve never watched any of them because I cannot bear the stress, but I’ve heard they are pretty effective and make the viewers cry. I’m not going to write that type of article here.

It all began when I woke up one morning with a swelling the size of an almond on the left-hand side of my neck. Deluded by optimism, I thought it must be the result of a throat or tooth infection. I was disabused of this by a specialist whom I went to see a few days later: “You have a mass in your throat. Better have it looked at quickly.” He was very grave, very calm. I realized afterwards that it had never occurred to him that someone might not know what “mass” meant in terms of human physiology. This was the only medical appointment to which Patrícia, my wife and “caregiver,” didn’t accompany me. She was helping Rita prune the vines up at Vinha Comprida. When I phoned her to pass on the doctor’s terse message, she instantly understood everything and, she tells me, stood there staring into the distance towards the pine woods above the valley, tears running down her face. Forty-eight hours later, I had the CT neck scan. I undressed calmly, put on that ridiculous hospital gown that makes everyone look like they suffer from a nonstop bowel problem, and lay down on the machine. Deep down I was still expecting good news: soon enough they’d be informing me that it was some minor complaint or other. We sat for an hour and a half under the dark green crepuscular lights of the waiting room.

At the precise instant that the radiologist came to speak to us, the life we had lived together for more than two decades ended. The radiologist had the frowning expression of someone offering condolences to a grieving family: cancer of the oropharynx with a tumor in the rear neck lymphatic chain and metastases in the lung. Not operable. Courses of very high dosage chemo and radiotherapy that would lead, within two to four months, to losing the ability to eat or breathe.

We decided that I wouldn’t be submitting myself to the weapons of oncological medicine: the traditional (surgery), the chemical (drugs) or the nuclear (radiotherapy). These weapons destroy an organism’s own defenses and accelerate its disintegration. I had already seen enough cancer patients delivered into the hands of oncology to tremble with horror at the thought of the same thing happening to me.

As we made our way home, there were no tears, no gestures of despair, no complaints. We said very little. The roads we had traveled so frequently seemed now to have an improbable reality to them, like paintings of classical landscapes. It was hot and the light was blinding.

It lasted for several days in a row, this emotional silence. At home, we exchanged the bare minimum of words. An appointment with a consultant at the Portuguese Institute of Oncology confirmed everything in the radiologist’s report. Later on, some institutions with names that tinkled like ingots of gold came and told us the same thing: there was nothing to be done that would make any difference.

These opinions did not matter to us. With a strange coolness, we wanted only to know what we would do to end my life when the time came. Patrícia promised she wouldn’t hinder me from dying, and would even help if necessary. As Plotia tells the poet in
Hermann Broch’s The Death of Virgil, “The knowledge of death is closed to one who goes alone, it is open only to two who travel united.”

These events already appear to me somewhat lost in the mists of time. Almost a thousand days have passed between that sultry afternoon of the 23rd of May, 2012, when I had the CT scan, and the cool, cloudy spring afternoon on which I am writing this. Two years and almost eleven months.

I don’t know whether we can discern in this development, which hasn’t ceased to surprise us and all who know us, the slow condensing of a miracle. I know there are many people praying for me and I joyfully thank all of them. But I also know that I have taken many practical measures to avoid the fate dictated by oncologists.

The first, a couple of weeks after the CT scan, was to seek the help of a homeopathic doctor. (Other doctors don’t like it one bit when the word “doctor” is applied to a homeopath, but they’ll just have to bear with me.) Under his supervision, I began by radically changing my dietary regime. Instead of eating the toxic rubbish that most people do, I started feeding myself with products that help my immune system, along with some that actively fight cancer. In addition, the doctor prescribed a series of food supplements and homeopathic medicines.

I owe to homeopathy the quality of those nearly one thousand days of life that I’ve gained by not following the oncology doctors. Two or three weeks after starting the therapy, I was already beginning to doubt that I’d ever had cancer. Just imagine: a cancer patient at an advanced stage, who just a short time before was devastated by exhaustion and pessimism, went to the beach! I confess I was afraid to go in the water at first, I who lived by the sea and have dived beneath its waves countless times. Only on the second day did I manage to take the plunge, and the happiness that swept over my body was so great that I realized the ice age we’d been living in since the diagnosis had given way to spring. Uncertain and fragile, it’s true, full of cloudy days, but a time to live and not to die.

The weeks raced by and we went on trips to Toledo, Burgos and Viseu. I attended conferences, I supervised students, I went for walks with my wife and our six dogs, I skipped over rain puddles with my granddaughter. For a long time my test results were good and my appearance very different from most of the poor wretches who attend the death camps of oncology. In addition, I wrote and published three novels and a collection of newspaper columns, and finished off a further novel and a book of short stories.

Nevertheless, there wasn’t a single day when I didn’t think about death. Not one. At first I didn’t fear, but nor did I understand, this Lady in Black. I gratuitously offered up to her the innumerable opportunities which she, devilishly, seeks within us to make our lives hell, or to steal us away. It’s true that the will to live has always had more power over me than the will to give up in the face of death, or seek it out—I wouldn’t still be here if that weren’t the case. But the struggle between life and death that takes place between them within my mind is very old and very complex. I’ve been seeing psychoanalysts for a long time. The one I’ve been working with for the last few years, and who is one of the key pieces of the puzzle of my non-death, took the news of my diagnosis as a body blow. I remember a brief conversation shot through with anguished silence, and then my telling him in an almost triumphant tone, “Well, you can’t win them all.”

Who was it putting words in my mouth like that? Who was it trying out in me that strange, furious cheerfulness that erupted when I found out that I had cancer and that it was incurable? What psychic force wanted me to die, wanted people to take pity on me, to remember me, to admire me? Which old and angry part of me was taking advantage of this narcissism of mine to drag me towards death?

Life is much less conceited than death. It is a peaceful, swelling tide; a broad, majestic river. In life, it is always morning and the weather splendid. In contrast to death, love—which is the other name for life—won’t let me die that easily: it forces me to think about the people, animals, and plants that I love and am going to leave behind. When life has the upper hand over death, I love those who love me, and the tide of life swells within me. Each tear that runs down my cheek as I fall asleep, each spasm of anxiety as I wake up in the morning and remember I have cancer, each wave of sadness that at times obliges me to sit down at the side of the road when I take the dogs for a walk and interrupts my prayer or soothing conversation with God, each of these manifestations arises from the love of other people momentarily failing to sustain me, and above all the failing of my own love. When, on the other hand, I have a day in which I manage to write and like what I have written, in which I bend down over the flowerbeds to pull out some weeds, in which I admire Patrícia’s energy as she sits at the computer or carries firewood back to the house—when these things happen, my time is no longer Ordinary Time but rather one long Easter Sunday.

The homeopathic doctor never promised me a miracle, and my health began to deteriorate in January 2014, a year and a half after the cancer diagnosis. Small things at first: some pain in the head, neck, and throat, more tiredness, bowel problems. Gradually, one by one, all the physical pleasures disappeared or became impossible: sex, a glass of red wine before dinner, a journey of more than two or three hours, the sensation of solid food with its varied flavours and textures passing down my throat, a run with the kids or the dogs.

Some weeks were worse, others better, but the tumor in my neck kept on growing. Then it burst like a little volcano of pus and gradually took on an appearance so abhorrent that I could no longer bear changing the plaster myself every morning. The terrifying sight would ruin my whole day and so the melancholy and repugnant task of attending to it was foisted on Patrícia, who knows how to do everything and is disgusted by nothing. Later on, community nurses started coming to the house and taking turns with her.

And so, suddenly, I was dying: in the middle of June 2014, a major hemorrhage woke me up one night. I was soaked in blood gushing from a vein that the tumor in my neck had unearthed and enfeebled. I fainted, and Patrícia, unable to bring me round, thought it was the end.

I spent whole days in bed. Then, gradually, I improved. Slowly and with difficulty, I regained a relative degree of health. In December, a second hemorrhage, although less violent than the first, forced me to undergo a blood transfusion. I had it in a hospital that, like almost all Portuguese hospitals at the time, was plunged into such chaos that I spent a day simultaneously amused and offended, watching the disorder that surrounded me.

The two losses of blood tilted the balance in favour of my inner death: I slipped back into the melancholy at whose bedside I had sat and with whom I had long conversed during those terrible weeks following the cancer verdict in summer 2012. How am I going to die, I asked. How, exactly?

I wasn’t referring to my so-called “natural” death. I was talking about death inflicted by myself. Meanwhile, however, Christianity, almost forgotten since my baptism, burst into my life through the words of a priest. The priest is another key piece of the puzzle, although unlike the psychoanalyst, it’s the puzzle of my joyous meeting with death.

Suicide is an affront to the will of God, whose wish is that the death of every Christian be at His disposal, to be delivered unto the Cross at the moment of Christ’s bidding and in the manner in which He decides. But Patrícia and I had solemnly sworn that I would die here, in my house, and that nothing would make me enter the carnival of ambulance lights to go and die in a hospital. That oath still holds.

We made this decision as we drove out of the parking lot of the clinic where I had the CT scan and heard the diagnosis. In my sickened mind, death was jubilantly celebrating its victory and it was impossible for me to combat or control this sentiment and summon forth the light of hope, which was curled up in a corner of me like a kid paralyzed with fear. On our way home, I thought about the difficulty and the risks involved in the way my brother had died. I thought about jumping off a bridge. I thought about the agony of poison and my ignorance of lethal medication. Above all I thought about the fact that all these pathways to death still left the suicidal person sufficient time to repent, which at that time was exactly what I didn’t want.

At times I went through the motions of dramatizing my death, an unoriginal, lifeless soap opera. Would I manage to throw aside, like worthless small change, the remnants of life that continued to glimmer within me? And what if I was wrong? What if they weren’t merely worthless tokens? What if they were worth putting off the silent darkness of the grave where I would rot? At the time of the second hemorrhage, I came close to finding a definitive answer to these questions. After locking up the dogs and bidding a brief farewell to Patrícia, suffocated by terror and kneeling on the floor unable to look at me, I left the house carrying a rifle and a plastic chair where I could sit with the rifle butt resting on the ground. I had scarcely any strength left in me and my legs trembled. My shirt was soaked in blood and, when I rubbed my hands over my face and eyes, I saw the trees, the bushes, the tool shed, the hillside and the vineyard all through a red mist. My determination in walking the few dozen steps, without hesitating and despite my physical weakness, came as a surprise even to myself. Right, I was going to die. I inhaled the intense scent of some peppermint that had seeded itself at the foot of the big pine tree without, until that moment, anyone noticing. I set the chair down beside a pile of tree trunks, sat down and, with the barrels of the gun in my month, my finger stroked the trigger. The metal felt cheap, clammy, listless, docile. Everything seemed vaguely ridiculous to me: my awkward gestures, the objects I’d gathered round me. Once again there came to me the scent of peppermint. I raised my eyes from the trigger guard and saw a clump of pine trees that the sun, shining through a gap in the clouds, had picked out in gold against the dark green of the hillside. Suddenly I felt a wave of inexplicable happiness similar to those sometimes cited in the Holy Scriptures. I came to the simplest conclusion in the world: I was alive and, for as long as that was the case, I wasn’t dead. I became truly content, feeling life simmering in my veins, even the damaged ones. I lay the rifle down on the ground and went back to the house. I didn’t look back, at the white chair and the gun, which remained in their places completely indifferent to my fate. As she opened the door, Patrícia, unable to control the tears that streamed down her face, fell into my arms. We stood there for a long time, clutching each other, almost motionless, like the trunk of a great tree.

There’s not much more to tell. My life is tiptoeing away. I’ve put behind me the idea of suicide, for a very simple reason that I took too long to discover. Here it is in the words of Christ according to Matthew, words that lit up like lightning—and finally did away with—the hesitant manner with which I’ve been dealing with pain and suffering during these almost one thousand days.

“He who holds on to life for himself shall lose it; and he who loses his life for my sake shall save it.”

This essay was first published in Granta Portugal 5: “Fail Better”, May 2015. Translated from the Portuguese by Robin Patterson.

terça-feira, 26 de abril de 2016

Mário de Sá-Carneiro suicidou-se há um século

sábado, 16 de abril de 2016

Malick Sidibé, fotógrafo maliano